A tecnologia e a mais nova sensação do verão
"Não instigarei uma revolução"
No episódio 6 da primeira temporada de “Os Simpsons”, Bart escreve no quadro: “Não instigarei uma revolução.” Assim eu espero também fazê-lo neste texto, especialmente em falar de algo que a sociedade ama exaltar com entusiasmo: a tecnologia. “Como assim? Senti um tom irônico agora, Diego…” Absolutamente! Vamos por partes.Os Simpsons é uma série de animação norte-americana criada por Matt Groening em 1989. Para quem não sabe (onde você esteve?), a série é o retrato de uma família formada por Homer, Marge, Maggie, Bart e Lisa. Em suas inúmeras temporadas desde o seu lançamento, Os Simpsons são sempre lembrados por uma capacidade quase que sobrenatural: prever o futuro.
Trump presidente dos EUA, o Brasil tomando uma surra da Alemanha na final da Copa do Mundo, autocorretores de texto, levantes de fraudes em processos eleitorais, impressoras 3D, entre tantas outras, várias foram as predições bem sucedidas feitas pela série em seus episódios. A mais recente delas: os óculos de realidade aumentada da Apple, o agora famoso Vision Pro. Na última semana, a Apple anunciou seu novo gadget, que foi recebido quase como uma Rainha Elizabeth II renascida como cantora pop, fazendo um dueto com a Taylor Swift. Com mais um pouquinho de atenção, certamente teria um sendo rainha de bateria no Carnaval do Rio de Janeiro. Uma pompa só! E, assim como a gente recebe uma nova balada no Recife, ele foi recebido com muito entusiasmo, com filas gigantes de curiosos tentando pegá-lo e muitos ostentando o título de “Early Adopter VIP”.
Apple Vision Pro é lançado (https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/apple-divulga-data-de-lancamento-dos-oculos-vision-pro-nos-eua-veja/)
Mas voltando aos Simpsons, eles mais uma vez acertaram nas suas previsões. No episódio intitulado “Friends and Family”, exibido em 2016, a animação ilustra as reações caóticas da população ao utilizar o gadget. Várias cenas tragicômicas do referido episódio mostram os personagens usando os headsets enquanto caminham de forma atrapalhada, dando com a cara nos postes pelas ruas, ou caindo em buracos, dando o tom do que estaria por vir.
Quanto maior a história e mais complexo é o enredo
Enquanto eu escrevia esse texto, fui buscar informações sobre Os Simpsons e me deparei com uma frase da sua sinopse que me chamou a atenção: “… é o retrato de uma família disfuncional…”. David Crouch e James Masteller, no livro “Perdoar nossos pais, perdoando a nós mesmos”, conceituam o que caracteriza uma família disfuncional:
"Uma família disfuncional é aquela onde os problemas, as confusões e até mesmo os maus tratos entre os membros são frequentes, acontecendo regularmente e de maneira contínua. Isso acaba fazendo com que os outros membros se acostumem com essas situações. Às vezes, as crianças crescem nesse ambiente e acham que esse tipo de convivência é normal. Geralmente, essas famílias têm adultos que dependem uns dos outros de maneira pouco saudável, e também podem lidar com problemas de vício, como álcool ou drogas. Outras causas incluem problemas mentais não tratados e pais que reproduzem o comportamento disfuncional dos seus próprios pais, ou fazem exatamente o oposto do que eles faziam. Em alguns casos, um pai que não está maduro o suficiente pode permitir que outro membro da família abuse dos seus filhos."
Eu não sei você, mas quando leio essa narrativa, o que me vem a mente imediatamente é a reflexão como esse retrato pode ser expandido não apenas para os núcleos familiares em específico, mas, por consequência, e em alguma proporção, para toda a sociedade. E que fique claro: não estou condenando a toda uma sociedade ou tampouco aderindo a campanhas do tipo “amo mais cachorro do que gente”. Devagar com o andor que o santo é de barro… Mas me pego pensando o quão amplo esse conceito de disfuncionalidade pode ser aplicado.
Indo além, penso também se o relativo sucesso de Os Simpsons em “prever o futuro” não se dá pela notória habilidade dos seus autores em observar e retratar a disfuncionalidade da nossa própria sociedade. Afinal de contas, concordemos que quando uma história começa a ser narrada, dependendo dos elementos, não é muito difícil de se prever o desfecho. Naturalmente, quanto maior a história e mais complexo é o enredo, mais observações e capacidade de abstração serão requeridas para se chegar a um entendimento que se aproxime ao futurismo. Quem não lembra do Capitão Nascimento fazendo sua leitura futurista da fatídica operação do BOPE antes da visita do Papa João Paulo II ao Rio de Janeiro?
Realidade em outras visões
O filósofo grego Platão, em sua alegoria “A Caverna”, descreve uma estória em que habitantes acorrentados em uma caverna apenas veem sombras projetadas na parede, acreditando que essa é a única realidade. Até que um deles escapa, descobre a verdade fora da caverna e tenta libertar os outros, mas é considerado louco. Plantão teoriza em sua alegoria que a vida humana é apenas um fragmento da realidade, e a verdade vai além do físico, estendendo-se infinitamente no tempo e em diferentes dimensões de vida, com a alma imortal sobrevivendo a ciclos de vida e morte.
Ainda que toda minha formação acadêmica e profissional tenha como base o estudo e aplicação prática da tecnologia e da computação, sempre a vi como meio e não como um fim em si mesmo. Tento, na medida do possível, minimizar ao máximo a criação do que Platão chamou de “fragmentos de realidade”. Sim, utilizo redes sociais e reconheço seu valor em conectar as pessoas, mas esse certamente não deve ser o meio primário de conexão. Sim, tenho celular e reconheço seu valor em nossa comunicação, mas prefiro e reconheço o valor fundamental da comunicação pessoal. Nada como apertar a mão de alguém e se fazer entender. A comunicação não é apenas sobre a mensagem, mas sobre como essa mensagem é transmitida em todas as suas nuances.
Então, penso que enquanto nós ainda estamos aprendendo sobre os benefícios — e os prejuízos — de tecnologias como telefone celular, redes sociais e afins, mais uma variável é adicionada a equação e que potencializa todas as variáveis anteriores, sob a prerrogativa de que essa mesma potencialização existe apenas para seus benefícios, subjulgando completamente seus malefícios. Michel Desmurget em “A fábrica de cretinos digitais — Os perigos das telas para nossas crianças” analisa o enorme prejuízo gerado nas crianças pela utilização excessiva de telas de celulares e tables — sim, excessiva e não a simples utilização:
Os nativos digitais são os primeiros filhos a terem um QI inferior ao dos pais. Após milhares de anos de evolução, o ser humano está agora a regredir em termos cognitivos e de capacidades intelectuais — por culpa da exposição excessiva a telas. O tempo que as novas gerações passam a interagir com smartphones, tablets, computadores e televisão é elevadíssimo. Aos 2 anos, as crianças dos países ocidentais consagram todos os dias quase três horas a telas. Entre os 8 e os 12 anos, esse tempo aumenta para cerca de quatro horas e quarenta e cinco minutos. Entre os 13 e os 18, a exposição é em média de seis horas e quarenta e cinco minutos diários. Em termos anuais, são cerca de mil horas para um aluno do 1.º ciclo do ensino básico (quase o mesmo número de horas de um ano escolar) e 1700 para um do 2.º ciclo. Já para um aluno do 3.º ciclo e do ensino secundário, falamos de 2400 horas anuais, o equivalente a um ano e meio de trabalho a tempo inteiro. Ao contrário do que se pensava, a profusão de telas a que os nossos filhos estão expostos está longe de lhes melhorar as aptidões. Na verdade, verifica-se precisamente o oposto: acarreta consequências pesadas ao nível da saúde (obesidade, desenvolvimento de doenças cardiovasculares e diminuição da esperança de vida), em termos de comportamento (agressividade, depressão, ansiedade) e no campo das capacidades intelectuais (linguagem, concentração e memorização). Tudo isto afeta gravemente o rendimento escolar dos jovens e o seu desenvolvimento.""
“Até mesmo a bondade, se em demasia, morre do próprio excesso”
E antes que a turma dos extremos venha com o “ah, por isso é melhor zero telas!”, eu recorreria a Shakespeare, que sabiamente ilustrou sobre os excessos: “até mesmo a bondade, se em demasia, morre do próprio excesso.” A privação completa traria uma clara consequência de estar alheio a realidade que lhe cerca e, no mínimo, privar a pessoa de, principalmente, saber como lidar com as características dessa própria realidade, ainda que para se opor a ela. Então, tudo é equilíbrio.
“A paz não é espera nem descanso. É um equilíbrio que se mantém no movimento e que desdobra constantes energias de espírito e de ação. É uma força inteligente e viva. Dizer sim à paz é dizer sim a Deus.” Paulo VI
Ainda que eu seja sim um adepto de tecnologia e reconheça seu profundo valor nos mais diversos campos da nossa sociedade e civilização moderna, não me entusiasmo com anúncios como o Vision Pro. Vejo, inclusive, com ressalvas, por criar simulacros ainda mais intensos dos que já temos em nossa sociedade atual — redes sociais, metaversos e afins. Vejo com pouco entusiasmo, por entender que criações como essa terminam por afastar ainda mais o que verdadeiramente nos faz humanos: interações reais, contínuas e, porque não, necessárias. Quantas situações sociais você não se submeteu a contragosto, mas que ao final, terminaram por lhe trazer uma nova conexão, amizade ou até um relacionamento. Acredite, eu nem de longe sou referência de sociabilidade, mas reconheço profundamente sua necessidade e benefícios. Afinal, como diria Aristóteles: “O homem é um ser social.”
Aguardemos os desdobramentos dos dispositivos de realidade aumentada, realidade virtual ou qualquer outro eufemismo que justifique uma “nova forma mais legal e transada de interagir com a realidade”. Mas, assim como Groening roteiriza em Os Simpsons, os sintomas são uma clara indicação do que podemos esperar acontecer. Ou, mais objetivamente, como diria o Capitão Nascimento: “Já avisei que vai dar m34d4…”.
Referências
[1] Groening, Matt. Os Simpsons. Série de animação, 1989.
[2] Crouch, David; Masteller, James. Perdoar nossos pais, perdoando a nós mesmos. Editora Vida, 2005.
[3] Platão. "A Alegoria da Caverna". A República.
[4] Desmurget, Michel. A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para nossas crianças. 2019.
[5] Shakespeare, William. Medida por Medida.
[6] Paulo VI. Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1972.
[7] Aristóteles. Política.
[8] CNN Brasil. "Apple divulga data de lançamento dos óculos Vision Pro nos EUA". Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/apple-divulga-data-de-lancamento-dos-oculos-vision-pro-nos-eua-veja/.
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