No fim, só sobra o que sempre importou

Durante as últimas duas décadas, cometemos uma proeza admirável, dessas que entram para o folclore humano ao lado de grandes invenções como o parafuso, o fogo e a desculpa “meu Wi-Fi caiu”. Convencemos gerações inteiras de jovens de que preparar-se para o mercado bastava, como se o mercado fosse uma espécie de divindade benevolente que recompensaria quem chegasse com boa vontade e um currículo de duas páginas. Por alguma razão insondável, dissemos que a academia, aquela velha senhora teimosa que insiste em ensinar fundamentos, não era mais necessária para os novos tempos.

E assim fomos, orgulhosos da nossa façanha civilizatória, formando profissionais especialistas em abstrações, mas que desconhecem completamente os alicerces que sustentam essas abstrações, suas engrenagens internas, suas ontologias computacionais. A formação técnica, essa etapa nobre e necessária que deveria servir como porta de entrada para a compreensão do mundo, é fundamental, claro, mas insuficiente para quem acredita que entender o aplicativo é o mesmo que entender o universo. Em suma, tornamo-nos excelentes usuários de coisas cujos princípios esquecemos de aprender, como se operar a superfície bastasse para compreender as profundezas.

Com o avanço das inteligências artificiais, essas mesmas abstrações que já não conhecíamos direito passaram a ser facilmente executáveis por máquinas incansáveis e estatisticamente talentosas. Afinal, em uma ontologia computacional, as regras já estão bem definidas, alinhadas, ordenadas e prontas para serem degustadas por qualquer algoritmo com apetite para predição. E como IAs, por ora, não passam de mecanismos sofisticados de estatística aplicada em escala industrial, elas se saem melhor do que nós na execução desses cálculos. É a matemática fazendo aquilo que a matemática faz, enquanto nós observamos com a mesma expressão de quem tenta montar um móvel sueco sem manual.

O que nos difere, então, das máquinas e suas capacidades escaláveis de predição é a nossa capacidade de julgamento. Esse artefato misterioso, subjetivo, incômodo, que insiste em lembrar que algumas decisões vão muito além dos domínios da aritmética. São decisões filosóficas, éticas e profundamente humanas, como a terrível pergunta “devo ou não cometer um pequeno delito de trânsito para chegar mais rápido ao hospital e salvar um ente querido em uma emergência médica?” ou a igualmente conflitante decisão de “abrir ou não uma exceção nas regras da empresa para ajudar um colaborador em uma situação de emergência familiar?”. Matemáticas não resolvem isso. As estatísticas fogem pela porta dos fundos. E a IA, coitada, trava.

Muitos temem que chegará um tempo em que humanos e máquinas irão se degladiar, talvez por um mal-entendido colossal, talvez por termos insistido em tratá-las como assistentes pessoais sub-remunerados. Mesmo que ambos se tornem racionais, quando e se o segundo alcançar esse feito, o padrão histórico da humanidade costuma ser temperado com uma boa dose de irracionalidade, conflito e decisões infelizes tomadas após noites mal dormidas. Por ora, porém, a preocupação que mais aperta o peito não é a batalha épica do futuro, mas as relações de trabalho do presente.

E, seja para um possível futuro apocalíptico ou para um presente pragmático, análogo às grandes revoluções, como a industrial, resta ao humano apenas uma arma de combate: o conhecimento.

É o conhecimento que molda a inteligência, que dá ossatura ao pensamento, que nos lembra que abstrações são feitas de algo mais do que botões coloridos e interfaces simpáticas. Nunca foi tão necessário buscar conhecimento, em todas as suas formas. Do holístico ao profundamente técnico, do geral ao absurdamente específico, basta que faça sentido para você e que mantenha sua mente acesa. Não se trata do famoso "conhecimento em T" restrito à sua ciência de domínio, mas sim, de um conhecimento com uma amplitude que transcende outras ciências. Afinal, aquele seu LLM preferido não é especialista apenas em culinária.

Apenas o conhecimento, esse velho companheiro que sempre esteve ali, é a verdadeira arma para manter relevância em qualquer papel humano em tempos de inteligências artificiais.

No presente. No futuro.

E, a saber, sempre foi assim. A diferença é que agora, com a competição com as máquinas crescendo diante dos nossos olhos, isso finalmente se tornou óbvio até para nós, supostos precursores da racionalidade.

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